quinta-feira, 19 de abril de 2007

Pirataria

Eram três. Eram três os piratas que invadiram minha casa naquela noite. Sim, piratas mesmo. Chegaram em uma caravela, a bandeira com o indefectível símbolo de sua transgressão - o famigerado crânio humano com dois osso cruzados sob o queixo - asteada. Entraram arrombando a porta. Apareceram de repente, junto com a tempestade torrencial que, sem aviso prévio, caiu estrondosamente sobre os telhados da vizinhança. Não tive tempo nem de me desesperar, nem de me trancar no banheiro, nem de esconder os objetos de valor. Quando assimilei os fatos já era tarde, a invasão já estava consumada. Minha moradia e meu destino não eram mais posse minha, mas sim estavam sob o julgo dos bárbaros Saquearam; violaram; comeram da minha comida; chutaram meu gato; cagaram pelas paredes; arrotaram; deturparam meus discos de Rock; bolinaram minha namorada; anarquisaram. Uns porcos. Uns mal-amados. Uns demônios, esses piratas. Eram três. O de tapa olho era o mais violento: gritava, morte ao rei! morte ao rei! a plenos pulmões. Este era o que mais me assustava, com seus brados agressivos e aquele tapa-olho (meu deus, eu pensava, deve hever um buraco putrefato por baixo daquele tapa olho, escorrendo pus, fedendo, fedendo). O da perna de pau manejava uma espada. Metia-a em tudo. Cortou todas as minhas cortinas. Rasgou todas as minhas roupas, aquele puto. Por falar em puto, era meio viado, o da perna de pau. Por mais pirata que fosse, por mais podridão moral e trogloditismo que quisesse transparecer, não me enganava, o da perna de pau. Tinha todo um conjunto de trejeitos que denunciavam sua "delicadeza". Confesso que achei engraçado aquela hipotética bichona enfiando aquela espada em tudo (nossa, e como pegava firma naquela espada, não largou ela um minuto sequer - talvez, ponderei depois, foi o que mais o denunciou). Por último, e não menos terrível, o que tinha um papagaio no ombro. Parecia ser o capitão. Dava ordens, homens, agora quebrem as vidraças! homens, agora enfiem o pau no vidro da maionese! homens, agora coloquem fogo nas roupas de cama! E por deus, aquele papagaio não calava a boca. Vozinha estridente, não fechava o bico. E mais. E mais: um sacana, o papagaio. Dava idéias, cochichava no ouvido do capitão. Desconfio até que era, de fato, o papagaio o cabeça daquele pandemônio. Não foram poucas as vezes em que percebi o capitão parar o que fazia para dar ouvidos ao papagaio, que parecia cada vez mais satisfeito com o meu sofrimento.
Tremenda desgraçada, aquela ave: quando, depois de uma noite inteira de terror e já cansados de tanta algazarra, os piratas davam sinais de que partiriam, o filho da puta do papagaio - como se estivesse procurando pólvora a fim de que os canhões não parassem de abrir fogo, continuando assim com a destruição - avistou meu violão de nylon em um canto da sala, e começou a bater asas e gritar, irritantemente, violão! violão! violão! Foi aí que começou minha verdadeira e sofrível desgraça, naquela noite de delinqüência (pois até então minha presença na casa era quase que ignorada por eles. Tirando alguns pescoções, não haviam se dirigido nehuma vez diretamente a mim): é teu esse violão, magro? - indagou, de forma grosseira, o capitão - sabe tocar? Sim..sei..digo..arranho alguns acordezinhos - respondi, cara pálida, com uma vontade colossal de pisotear a cabeça daquela maldita ave. Pois toque. Quero ver tu tocar - ordenou o pirata - toque uma bela canção. Adoro belas canções. E ai de ti se tocar uma que eu não goste! Ai de ti, hein! Mas..mas..que tipo de canção tu gosta? rock? Roberto Carlos? Pode ser uma do Roberto? - perguntei, tremendo, tremendo. Ora, te vira magro, te vira. E ai de ti, hein! ai de ti! Dedos duros, gelados e duros (fazia frio, muito frio naquela madrugada) ensaiei o primeiro acorde: si menor. Palheta pra cima, palheta pra baixo (sempre fui péssimo com os dedilhados. Palhetas sempre me acompanhavam). Achava eu, que de tão apavorado, não teria voz pra cantar a canção. Mas, por desígnio divino, tive voz sim (o que foi pior. muito pior. Acredito que dádiva mesmo seria não ter tido voz naquele momento) "estou amando loucamente a namoradinha de uma amigo meu / sei que estou errado mas nem mesmo sei o que me aconteceu..." Riram. Gargalharam. Deram guinchos de tanto que riram, os terríveis. Senti um misto de raiva e medo, muito medo naquele momento. O que fariam comigo? Estava claro que não tinham gostado, ai de mim! ai de mim! Tsc tsc tsc - desdenharam capitão e papagaio em uníssono. Odeio Roberto Carlos, odeio Jovem Guarda. Sempre odiei. Uns vendidos. Uns piegas. Sempre coniventes com a ditadura militar. Uns pagadores de pau. Sempre preferi o Chico, Caetano, Mutantes, o Raul. Me identifico muito com eles. Contestadores. Contestadores como nós, os piratas. Ai de ti! Ai de ti, magro. Agora tu vai ver! Pfff, Roberto Carlos?! Te dou o Roberto Carlos! Me apavorei. Chorava. Eles rindo, rindo, eu, chorando, chorando. Me arrastaram pro lavabo, me paulearam a cabeça. Desmaiei, não vi mais nada. A última coisa que vi e ouvi foi o papagaio sentenciando ai de ti! ai de ti! um filho da puta, esse louro.
Até hoje não sei o que fizeram comigo, enquanto permaneci desacordado. Só sei que acordei, pela manhã, me sentindo muito estranho, muito. Como se tivessem tirado algo do meu ser. Como se tivessem levado minha alma. A casa, semi-destruída, era o que menos me preocupava. Eu só queria saber o que tinham feito comigo, só isso. Mas até hoje não descobri. Apenas sei que desde então venho me sentindo diferente, loucamente diferente. Mas no fundo isso não importa mais. Já superei. Sou outro agora. Um novo homem. Renasci das minhas próprias cinzas. Os piratas, acredito eu que voltaram pro Atlântico: saqueando, destruindo, causando medo, entoando canções de protesto. Minha namorada me largou alegando que só atraio energia negativa. E eu continuo com a minha vidinha, normalmente. Claro que algumas coisas não continuam exatamente como eram antes. Algum traumazinho, por mais ínfimo que seja, sempre fica. Sempre.

Roberto Carlos aboli do meu repertório. Para sempre.