segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Trancando a Respiração

Ele. Ele era um rapaz medíocre, segundo sua auto-classificação.
Não. Na verdade se pode dizer que era tão medíocre assim. Era apenas um bocado inseguro, e muito autocrítico: exigia demais de si mesmo, o que criava na sua cabeça a inquietante, por que não dizer, paranóia de que tudo que fazia era mal feito, mal acabado, tosco, gotesco até nos mais ínfimos detalhes. Por isso se sentia medíocre "melhor algum outro tomar a inciativa e fazer. Se eu meter a mão aí vai sair merda". Uma pena. Uma mente brilhante a daquele rapaz, só ele não percebia.
Mas essa não é a questão. A questão é essa:
Era cabeleireiro, aliás, auxiliar de cabeleireiro (sentia-se tão medíocre que não tinha coragem pra tomar as rédeas da profissão. Só se sentia capaz de lavar os cabelos da clientela. Tesouradas e pinceladas jamais " e se faço cagada?").
Como reza a lenda e a maldade do inconsciente coletivo sobre os profissionais dessa área, tinha lá sim as suas frescuras (frescuras todo mundo tem, mas, por pura pilhéria, as frescuras de quem é cabeleireiro, ou auxiliar, são vistas com outros olhos. Olhos mais depreciativos), e uma delas era não suportar qualquer tipo de cheiro ruim pelo horário da manhã. À noite não havia problema, já estava acostumadíssimo a frenquetar botecos "chinelões", como gostava de definir, que dispunham dos banheiros mais imundos e fétidos que se pode imaginar. Vômitos entupindo pias, cagalhões escorrendo por fora dos vasos, cheiro de urina já entranhada a dois dias nas paredes, pra ele tudo fichinha, tudo uma barbada. Tinha nervos de aço e estômago forte. Mas não no intervalo de tempo que procedia dos primeiros raios de sol da manhã e antecedia o intervalo do almoço. Neste relativamente curto espaço de horas era um frouxo, nasal e estomacalmente falando.
Por conseqüência desta sina, qualquer odor forte, amargo, acre, azedo, pestilento ou putrefato que lhe assaltasse narinas adentro, de manhã, era motivo pra sentir ânsias de vômito colossais e fazer com que perdesse o apetite, o tesão e a já escassa auto-confiança que possuía. (Muitas dessas ânsias vindo às vias de fato. Saindo das entranhas de seu estômago, os resquícios do seu recém deglutido café da manhã, vindo ao mundo com a famigerada nomenclatura de "hugo" - ou vocês nunca ouviram falar em "chamar o hugo"?)
O fato é que no tortuoso caminho que fazia da sua casa ao salão em que trabalhava (uns 15 minutos de caminhada) havia dois locais que eram considerados por ele como riscos iminentes à sua fraqueza matutina: um terreno onde vivia um enorme Dálmata que cagava de uma forma inacreditável. merdas grandes, consistentes, em grandes quantidades e muito fedorentas. O cão defecava apenas dentro do pátio, mas defecava tanto que o cheiro tomava a rua e agredia os nasais de quem quer que colocasse os pés naquela calçada. O outro local "perigoso" era um açougue. Animais mortos pendurados ( esta cena tomava forma em sua cabeça sempre ao passar pela casa de carnes fazendo com que o estômago revirasse mais ainda) e a mesma coisa do ítem citado anteriormente: o cheiro daquela carne fria e pendente tomava rua e maltratava os transeuntes.
Seria muito simples evitar esses infortúnios odorísticos: bastaria tomar um caminho alternativo ou atravessar a rua. Mas não era tão simples. Não havia caminhos alternativos, e atravessar a rua, que era muito movimentada, demoraria tempo demais, sinaleiras abrindo, fechando, e ele estava sempre atrasado, não podia ser dar a esse luxo de atravessar a rua.Demorava tempo demais no banho, cantando e pensando na vida, acabando por sempre perder a hora. Era o preço que tinha que pagar por esse deslize: aguentar firmemente os odores destes dois locais malignos. Mas uma solução veio à tona, muito simples por sinal: ao passar pela frente dos já supracitados locais de cheiro forte: trancava a respiração. Enchia o pulmão de ar ao colocar o primeiro pé na calçada, segurava firme, e soltava o ar ao deixar completamente pra trás os cagalhões ou os cadáveres.
Ficou anos fazendo isso. Chegou até a calcular o quanto tempo prendia a respiração por dia, uma equação deveras fácil: levava míseros 4 segundos para atravessar completamente cada um dos calçamentos. Ao sair pela manhã para o serviço, passava pelo cachorro e pelo açougue, isso dá o total de 8 segundos. Porém ao voltar para casa, o açougue já estava fechado, então só restava o canino, isso dá mais 4 segundos. Um total de 12 segundos por dia, 60 por semana (sendo que trabalhava 5 dias por semana), 240 por mês, 2880 por ano. 48 minutos por ano trancando a respiração. Isso sem contar os mergulhos nos mares e piscinas no verão e a técnica para parar com soluço que consistia em reter o ar nos pulmões, da qual era adepto.
(Pela primeira vez na vida não se sentiu assim tão medíocre, afinal, trancar a respiração por 48 minutos não é para qualquer um. Deve-se ter culhão para tal façanha, pensava ele. E por anos a fio sentiu orgulho disso).
Certa vez, já depois de velho e frágil, ao tomar ácido e fazer fazer sexo oral em uma garota 3 vezes mais nova,em uma festa, lembrou dos tempos de glória e saúde em que trancava a respiração por tanto tempo, ao longo do ano, e sentiu uma vontade imensa de ficar os 48 minutos sem respirar, mas de uma só vez. Encheu o pulmão de ar, enfiou a cara com tudo na flor aberta que oferecia seu néctar, e lá ficou.
No outro dia, no velório, corria o boato de que estava já com o coração fágil e não aguentou manter relação sexual com uma garota tão linda, jovem e cheia de vida, emoção demais para suas pontes de safena.
Já a garota jura de pés juntos que durante 48 minutos teve orgasmos múltiplos, e que, nesse período de tempo, ele não tirou os rosto de entre suas pernas. E o mais curioso, disse ela, é que ele dava a impressão de que não estava respirando.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

Divagações de Um Leigo

Kafka não concluiu o Castelo.

Não sei o porquê disso, afinal, sou leigo (no momento estou com 47 anos e trago essa característica, excesso de anulidade de conhecimento, desde os tempos de juventude, em que, por falta de culhão e iniciativa, passava as manhãs, tardes e noites a jogar Mario e bater punheta - quando o tédio era grande e enquanto o membro fálico ainda se mantia ereto e íntegro).

De outas coisas entendo - são poucas, quase nulas, confesso, as coisas das quais entendo - mas de Kafka não entendo um ovo. Apenas sei que o Castelo ficou inconcluso (por que será? Será que lhe faltou tijolos? Mão-de-obra especializada?...Infâme essa piada. O tipo de piada que só um leigo pode arquitetar). Disso eu sei (repare: nem tudo está perdido. alguma coisa sei!) porque há tempos atrás (décadas, eu diria) a guria que me namorava, na ocasião, certa vez comentou, assim como quem não quer nada (será? será que ela já não estava comentando de propósito pra testar minha carência de sabedoria? pois é. Mais uma coisa que não sei e nunca saberei) "estou a ler um livro do Kafka, que, por sinal, ele não chegou a terminar." Achei instigantemente engraçado aquilo: ela, mesmo não lendo a obra até o fim - entenda-se "fim" como "até onde Kafka escreveu" - sabia que era um romance sem epílogo. E mais ainda: por que cargas d'agua se aventurar, se embrenhar em algo já sabido que vai interromper-se de sopetão, sem saciar nossa fome de ponto final, sem o arrepio trasnmitido por um ostentoso "the end"? Por quê? Por quê? (expressão essa que, como em todo bom leigo, esteve presente em toda a minha vida a latejar no vasto latífundio que sempre foi minha cabeça - apenas na cabeça, nunca vindo a explodirem forma de oratória através da língua).

Ao contrário de mim, ela não era leiga. Entendia de Kafka e sabia o motivo do não término do Castelo. Chegou a me explicar até, mas eu, no ápice da minha energia sexual não dei a mínima: esqueci. Só queria eu saber de beijinhos e abraços e arretões - beijei abracei e arretei tanto que acabei por me tornar mais leigo ainda.

Eu, leigo de Kafka, apresentei a ela, leiga de Frank Jorge, um cd do próprio. Foi um trato inconsciente. Eu dizia "Frank é o cara" ela dizia "Franz é o cara". Acabou se sucedendo que ela virou fã do jovemguardiano e eu, tomando vergonha na cara, e disponibilizando espaço em meu cérebro para um feiche de esperança (quero saber! quero saber!), fiz um empréstimo na biblioteca pública. Metamorfose. Li, porém, continuei leigo. Nada contra (não sou leigo porque quero, sou porque sou) mas simplesmente não consegui prestar a devida atenção que deveria àquelas páginas. Eu estava com a cabeça cheia (beijinhos, abraços e arretões) e com o espírito de leigo mais aguçado do que nunca. Qual era mesmo o nome da barata? Era barata, não? Ela morre no fim? Tinha pai e mãe? Não recordo, não sei, não faço idéia, não me desperta o interesse, não me arrepia os cabelos das pernas, afinal, sou leigo. Leigo de uma forma amordaçante, de uma forma angustiante.

(Ultimamente - talvez por causa disso - tenho acordo sobressaltado, papas de suor no ventre da madrugada, com a inquietante sensação de que faltarão tijolos pra a conclusão do meu prórpio castelo.)